Vini,
Já faz um tempo que estou para escrever esta carta. Adiá-la só aumentou a necessidade de fazê-la existir. Também foi a maneira que achei de tentar me reencontrar em meio a esse turbilhão. A vida é mesmo cheia de grandes encontros. E logo agora, nos desencontramos. Definitivamente, esta carta precisava acontecer.
Espero que tenha perdoado minha falta de jeito quando nos conhecemos, você sabe que sempre me faltou jeito para um monte de coisas. Consigo lembrar nitidamente a primeira vez que nos vimos: você perguntou se podia sentar do meu lado, pediu uma caneta emprestada e seguiu mordendo a tampa daquela Bic azul que ficou contigo o resto da aula de cálculo. Lembro que meio entediado, meio maroto, você abriu meu caderno e na última folha escreveu: “Eu não sei o que estou fazendo aqui. E você?”
O tal caderno já nem existe mais, mas o bilhete eu guardei e continua comigo até hoje. Talvez tenha sido ele o grande motivador de eu estar te escrevendo agora. Na verdade, eu queria ter te falado muito antes. Eu deveria ter falado antes.
Até hoje não consigo compreender os motivos que o levaram a dar fim a própria vida. Quando encontraram o seu corpo, tive esperanças de não ser você ali. Não faz ideia de como eu rezei. Por Deus! Como eu rezei para não ser você naquele maldito chão frio.
Refaço essa cena na minha memória de uma maneira enlouquecedora. Eu não sei como você estava quando foi encontrado, eu não consegui ir até lá, eu não consegui! Guardo comigo as melhores lembranças, o Vinícius com vida. Ainda assim, esse pensamento me perturba frequentemente, tirando toda a paz que desejo pra mim.
Penso em qual instante você foi acometido por uma certeza cega. Eu custo a acreditar que durante o ato você não tivesse sentido muito pela grande merda que estava fazendo. Se não tivesse se arrependido não seria você. Ou era parte sua desconhecida até para si. Pode ser que seja fantasia e sequer tenha passado pela sua cabeça um arrependimento prévio. Pode ser que eu tenha inventado tudo isso para perdoá-lo de ter ido embora assim. Como eu não notei que você já havia feito as malas? Por que não chamou meu nome pedindo ajuda? Logo você que tanto me ajudou.
Você deve ter prestado atenção demais na crueldade das pessoas esbanjadoras de sorrisos falsos que se diziam felizes a todo momento. Mas cruel mesmo é a morte, meu amigo. Não a vida. Cruel é a morte. A vida nunca foi fácil e a maioria das pessoas está cada vez mais se distanciando de si, como se todos estivessem perdendo o eixo. O mundo tá virado num caos. E você sabia. O mundo foi que perdeu o eixo. E como eu falava, as pessoas sustentam um quase riso no rosto enquanto o resto do corpo se recolhe em choro. É tanta desonestidade que já não nos lembramos de ser sinceros com a gente mesmo. Porque eu sei que no fundo você queria viver, você queria continuar estando aqui. Faltou quem pudesse lembrá-lo das suas próprias verdades. Por onde eu estive nesse momento?
Falhei com você. E você falhou com tanta gente que até hoje te ama. Não estou aqui para julgá-lo afinal, mas queria que soubesse o quanto sinto. Sentir. Nenhuma definição melhor para aquela noite de verão que ficamos até tarde na praia observando o mar, deixando o vento soprar em nossos ouvidos, lambendo com violência nossos cabelos enquanto acompanhávamos as ondas quebrando e se arrastando lânguidas até a areia. Eu senti que você foi feliz ali. Mas se tornou tão imprevisível quanto o mar.
Se foi arrebatado por faltas de propósitos na vida, eu seria capaz de dar-te todos os motivos para você ainda estar aqui. Queria poder ter dito sobre essa felicidade urgente, ela sim mata todas as chances de aproveitar o que a vida nos propõe de bom. Ser feliz é não ter obrigação nenhuma de ser feliz.
Ainda dói olhar suas fotos, dá uma saudade que parece não ter fim. Nem sei se quero que tenha, pois é um jeito de me reaproximar de você, de lembrar do que fomos. Ela te devolve um pouco a mim. Sinto não ter tido tempo de lembrá-lo o quanto você era especial e importante para toda essa gente que por aqui ainda chora.
Sua mãe não tem mais coragem de sair de casa. Seus irmãos, tão pequenos na época, até hoje sentem sua falta. A ausência, toda essa dor que você consentiu a eles. Eu queria perguntar: como pôde? Não quero brigar, mas preciso dizer que as coisas não continuam fáceis e ainda assim, me lembro da tua risada. Quando foi que você desaprendeu a sorrir?
Sinto uma saudade assombrosa do dia em que você pôs a tocar sua música preferida e repetiu cinco vezes seguidas (eu contei). De quando dividiu aquele seu sonho recorrente comigo e falou dos planos que tinha para dali alguns anos – você queria ser cineasta, lembra? Saudade daquela janta na casa do seu pai, que a galera caiu na piscina de roupa e tudo, das férias na Serra, daquela noite que ficamos estudando para a prova teórica pra tirar carteira de motorista. Você que me ensinou a não afogar o carro. Lembro que custei a aprender, mas graças a ti, consegui. Naquele dia, você não desistiu de mim.
Até hoje me faço a pergunta daquele bilhete escrito com bic azul na última folha do meu caderno: “Eu não sei o que estou fazendo aqui. E você?”. Não tive tempo de responder. Mas se quer saber, eu também não sei direito o que estou fazendo aqui. Mas às favas com essa mania de tudo precisar ter um sentido na vida. Muita gente não sabe o que está fazendo ou para onde está indo e nem por isso deixa de continuar andando. Ainda assim posso sentir que estamos marchando rumo a algo bom.
Sinto sua falta, meu amigo. Amo você desde sempre e para sempre. E pode ficar tranquilo, que eu não desisti de ser feliz. Se você desistiu de você, tanto mais vontade sinto de viver por nós dois. Enquanto não for determinado que por aqui minha missão já foi cumprida, eu sigo. E vou até o fim. Pode apostar.
Meu mais forte abraço, com saudades.