A cena do traseiro de um cão à porta da guarita de vigilância evidencia a existência de potes de comida e água reservados a um amigo que dias, meses ou anos atrás, ali se achegou de mansinho e ressabiado.
Nas guaritas, em postos de combustível ou junto aos moradores de rua, lá estão os peludos sem raça definida. Por que eles se tornaram companheiros? Poderiam capturar alimentos em roubos furtivos, embora tais riscos, tudo indica que o instinto os ensinou a explorar o que pode haver de mais humano entre os humanos, a compaixão.
Parece que esta história iniciou há 15 mil anos, quando, em prováveis disputas de caça, eles perceberam que poderiam ceder em recíproca. Não parece absurdo supor que um dos quais, já saciado, tenha concedido uma sobra da caça a quem por ali se avizinhava, e, desde então, tenha iniciado um milenar relacionamento. Para que tal percepção os agregassem, teriam que se comportar de acordo com regras que respeitassem os limites de força e domínio, provavelmente nem sempre de modo tranquilo, mas o certo é que eles têm superado as desavenças e cá estão em convívio.
Um olhar mais atento pode desvendar o que talvez represente as motivações deste mutualismo. Observe como estes caninos se aproximam dos moradores de rua. A maioria torna-se uma inseparável companhia. Achegam-se aos poucos, e até roubam, mas não podemos alegar roubo ao que corresponde instinto. E o que fazem os tais sobreviventes urbanos? Dão-lhes alimento, casa, cuidam de suas chagas, e por que? Não parece imediatamente haver um motivo, porém não-raro flagramos estas espécies tão unidas que até mesmo compartilham o mesmo abrigo para as noites mais duras.
Por pior que sejam os tempos, cão algum abandona o amigo. Cães não traem, não roubam, aceitam carinhos, não julgam, não nos evitam nem quando estamos pobres ou tristes.