Porto Alegre, 24 de junho de 2013
Querido pai,
Na última quinta-feira, 20 de junho, assim como 1 milhão e meio de outros brasileiros, eu fui às ruas. Eu ergui um cartaz escrito “vandalismo é a fila do SUS”, enrolado num plástico pra não estragar minha mensagem sob a forte chuva, e entoei cantos junto com a multidão, como “Da copa, da Copa, da Copa eu abro mão. Eu quero é dinheiro pra saúde e educação”. Eu também gritei “sem violência”, e junto a milhares, sentei-me no chão da molhada Avenida João Pessoa, no cruzamento com a Ipiranga, para mostrar que estava ali por um protesto pacífico. Tinha senhoras, senhores, cadeirantes ao meu redor. E jovens, muitos jovens, vários bem mais jovens que eu. Tinha também gente vandalizando, do outro lado da rua. E tinha uma quantia imensa, que não consigo nem contabilizar, de policiais da tropa de choque da BM defendendo o prédio do Grupo RBS de uma suposta invasão. Mas não pai, nem eu nem todas aquelas 20 mil pessoas estávamos ali para quebrar nada. Estávamos ocupando a rua, em frente ao maior veículo de comunicação do Estado, para dizer que queremos um transporte 100% público. Queremos licitações para as empresas que estão em situação completamente irregular. Queremos que investiguem seus lucros descabidos. Queremos um basta para a roubalheira neste País e também queremos que os investimentos públicos não sejam para um torneio, mas para as urgências de nosso povo: saúde e educação. E queremos que a imprensa demonstre de maneira séria nossas demandas.
Policiais da Brigada, talvez os mesmos que no início do protesto me entregaram um folder dizendo que estavam ali para me proteger, começaram a jogar bombas de gás lacrimogênio contra todos nós. Contra mim, as senhoras e senhores, os cadeirantes, os muito jovens. E sabe pai, eu nunca tinha sentido uma situação tão ruim. Em todos os protestos que já participamos juntos, vimos a polícia muitas vezes agredir manifestantes com cassetete. E era horrível. Mas o gás me parece bem pior. É sem critério e é contra todos. Eu tinha um vinagre na bolsa, coloquei no lenço que tinha no pescoço e respirava através dele. Compartilhei o vinagre com muita gente. Recuávamos, mas a polícia não parava. Uma bomba estourou a meu lado, quando já estávamos bem longe da Ipiranga. A sensação foi de que eu era uma barata envenenada. Achei que ia desmaiar. Ouvia muita gente pedindo o vinagre que viam em minha mão, mas eu já não conseguia compartilhar porque não enxergava nada e me desequilibrava, sem conseguir andar. Alguém me segurou e me fez continuar adiante. Meus olhos ardiam, meu rosto inteiro doía. Lavei o rosto com vinagre e, recuperado, saí gritando: SEM VIOLÊNCIA! ABAIXO À TRUCULÊNCIA! Também cantamos “Ei polícia, vinagre é uma delícia”, mas não te parece um absurdo sermos obrigados a andar com vinagre para nos defender? Não te parece que os modos dessa Polícia lembram a ditadura, o fascismo? Querem acabar com nossa liberdade de expressão, com nosso grito, que estava preso na garganta há tanto tempo, jogando gás?
E agora você diz que estou sendo massa de manobra para um golpe de direita? Que o governo tinha que ter feito isso mesmo? Mas pai, e aquela noção importante de direitos humanos que você me ensinou? E não era você que me dizia que só haveria transformação se o povo acordasse? O povo acordou, agora você quer que ele vá embora? Você realmente acha que mudei tanto assim e agora sou de direita? Pai, parece bobo o que vou te dizer, mas tô vendo isso na rua. Essa gente que “acordou” agora não é de direita. É senso comum. E o senso comum reproduz a ordem dominante. A direita vai tentar se aproveitar disso sim, mas é por isso mesmo que eu vou continuar na rua. Nós começamos tudo isso. Há tantos, tantos anos atrás que nem sei. Você já estava nas ruas bem antes de eu nascer. E eu vou fazer minha parte e seguir aqui, para conversar com essas pessoas que estão vindo pra rua agora e que, obviamente, não são de esquerda, por que sempre fomos de minoria, lembra? Mas as pautas pelas quais elas estão lutando são sim de esquerda (ou você já viu a direita defender transporte público e investimentos públicos em saúde e educação?), e por isso acho que nosso país pode ficar muito melhor, com um povo bem mais consciente. Mas isso só se não perdermos a oportunidade de conversar com esta gente.
Pai, continuarei lá. Espero que a polícia do Governo Tarso em algum momento ainda faça jus aos princípios democráticos que este governador já defendeu. E não te preocupe, não vai ter golpe de direita. A direita inteira já está no poder. Eu espero que ainda possa contar contigo nessa luta. É por um país melhor. É por nosso futuro. É por tudo que você me ensinou a lutar. E eu realmente espero que você não desista agora.
Um grande abraço, com esperanças de um mundo melhor,
Seu filho
Foto: Karine Viana