O cara sempre foi meio impaciente. Lembro-me do tempo em que lançava suas palavras contra tudo e contra todos, mas, como uma boa dose do tempo agrupou-se em sua vida, depois dos 40 anos ficou menos bélico. De ânimo sempre pronto a batalhas, situação cuja essência batia-lhe à personalidade, aos poucos, foi-se, digamos, adocicando. Esse não seria o termo que concordaria comigo, decerto travaria uma discussão alfanumérica acerca do valor da palavra, “nada condizente com o que sou, de fato”… mas o fato é: depois dos 40 adocicou-se.
Certa vez, acordado por um som altíssimo, levantou-se, sentindo-se acorrentado, e foi buscar a origem de tanto mau gosto. Ouvia-se um som de bate-estaca, “ao grau em que nenhum ser humano normal sobreviveria”, e pôs-se no front. Munido da Lei municipal e da argumentação quase infalível, dirigiu-se, com os cabelos recém-saídos do travesseiro, ao baile funk no clube vizinho. Lá ninguém o ouvia e a cena era caso de internação. No meio do salão, balançando a Constituição, a Lei municipal e o Código de Postura (perdoe o esquecimento), tentava fazer valer a regra naquele mar de microssaias e cordões pendurados que, sem coreografia prévia, dançava a alegria da juventude carioca. Viu-se emudecido e descreveu-se “esquartejado em seu direito”. É obvio que suas razões eram genuínas, mas contra os homens, o indivíduo perde a força.
Ainda mantinha algumas teorias; defendia que Deus, “aquele que se diz perfeito”, cometeu alguns erros gravíssimos, “além dos mais óbvios: ganância, fúria, individualismo e mau hálito”. Sabia que em sua anatomia, aprendera nas aulas de ciências, havia órgãos e sistemas que foram planejados para manter uma fantástica máquina de fabricar energia, e, portanto, vida. Mas não se conformava, e bradava diariamente, com o fato de as orelhas e pernas e braços não serem removíveis: “Pra que duas orelhas na hora de dormir?”, “Há a necessidade de dois braços na tão sagrada hora do sono?” E seguia com seu discurso irrefutável, afinal, pra que dois braços na hora de dormir? De fato atrapalha…
Sim, o cara chegou aos 40 anos e adocicou-se. Agora, mais velho um pouco, a coisa ficou mais fácil ainda: tornou-se um gentil debatedor, faz o meio de campo com maestria e é visto com grande simpatia por muitos. Não quer dizer que aceite tudo prontamente e que a vida tenha se tornado um mar de rosas, mas o pensamento vem antes da desatinada discussão. Porém, uma coisa ainda não consegue: ouvir a música alta do vizinho, as reclamações infundadas do chefe e as fofocas reinantes na repartição. Para isso ainda vocifera: “por que não somos munidos de controle auditivo? Quando quiser, diminui ou desliga…” recrimina.
Deus errou. Sim, errou e feio! A humanidade está aí que não me deixa mentir, mas dar inteligência também foi uma saída que nos livrou da dizimação. Hoje, meu amigo que gostaria de ser surdo para não ouvir tanta bobagem, usa seus headfones como instrumento para o refúgio. Ouve sua música, outro acerto de Deus, e segue a vida mais doce, apesar de discordar de muitas coisas.