A grande novidade!
As carteiras eram dispostas em fileiras que precisavam estar alinhadas, se não era considerado desleixo ou talvez coisa pior. As carteiras eram bancos de madeira feitos de ripa que eram aparafusados à mesas de madeira escura que exalavam um cheiro de cera , a do mesmo tipo que se usam em enceradeiras. Ah! Desculpem, vocês talvez não conheçam esse aparelho quase de museu. Para completar, o chão era vermelho, de uma lajota muito vermelha, mas um vermelho morto, triste, opaco; finalizando o cenário um quadro negro que era negro mesmo, não verde, nem branco . O professor de jaleco na frente da turma, preparava para começar a aula de moral e cívica. Sim, meus amigos, havia uma aula com esse nome e imaginem quais os professores eram escolhidos para essa aula? Para piorar estávamos nos fins dos anos 60 e uma ditadura apertava seu nó ao nosso redor.
O professor monocórdio iniciou falando que a família era o esteio da sociedade, contra a degradação da moral, blá blá blá…
Vou poupá-los, e farei um resumo, ou melhor, traduzirei as intenções daquele homem honrado. Ele queria criticar o divórcio, tema muito discutido na época, já que não era possível se divorciar, mas só desquitar. E o que era isso? Você poderia se separar, mas não poderia casar de novo. Em suma, de certa maneira você continuava casado. A saída criativa era viajar e casar em algum país que assim o permitisse. Verdade que isso era solução para os ricos. A classe média “amigava” (termo da época), porque o assunto vinha à tona naquela aula?
O Senador Nelson Carneiro tomou para si a missão de tentar passar uma lei que permitisse o divórcio e sepultasse de vez o desquite que foi uma luta de anos. Mas, voltando para a sala de aula, depois deste esclarecimento, o professor, com sua didática impecável e querendo demonstrar o quão daninho seria o desquite, e pior, e que “Deus nos livre” do próprio divórcio, dirige a turma a fatídica pergunta: quais os alunos desta sala pertencem a lares desfeitos? Ai…
Os pobres três alunos que o eram, com medo de serem pegos na mentira, levantaram suas mãos, esperando pelo pior, mortos de vergonha e humilhação.
Na época, o rotulo das razões de um desquite eram que o pai era jogador de cartas, bêbado, a mãe era uma “vagabunda”, no sentido bíblico etc.
Não vou me alongar no martírio dos meninos, mas darei um salto de quarenta anos para os dias de hoje. Hugo, sentado em sua carteira bem mais ergonômica que as de quarenta anos atrás , tem pais divorciados , mas, como ele, a metade da turma ou são filhos de pais divorciados ou são filhos de recasamento. Não é mais uma vergonha a ser carregada e camuflada. O divorcio só enaltece o casamento por duas simples razões, a primeira que fica casado quem quer, apesar da dificuldade emocional e muitas vezes financeiras de se divorciar, mas a possibilidade existe e em muitos casos pode ser feita de modo rápido em um cartório, o casamento não é mais uma cruz a ser carregada. A segunda é que o divórcio permite um segundo casamento que, em geral, é mais maduro que o primeiro. Voltando para Hugo, hoje é dia de ele ir para casa do pai, a mochila um pouco mais pesada porque sempre há coisas para ir de uma casa a outra. Entra em casa e voa direto para ligar o computador e a TV , isso para falar com amigos, que estava a um absurdo de tempo de meia hora sem se comunicar. Me impressiona estas crianças que conseguem se dividir entre duas e três telas de computador, a TV a cabo, zapeando, é claro, e com olho na tela do celular se acaso algum incauto lhe mande uma mensagem via “whatsapp”. A verdade é que se forma uma sinfonia de sons entre os emitidos pelo game do computador, o som da TV e os alertas do celular. E Hugo reinando calmo e sereno com olhar complacente para todas aquelas telas. A secretária do lar (como eu acho esse eufemismo ridículo!!! Coisa de gente culpada), a empregada de nobre trabalho se aproxima e oferece a Huguinho um lanche, enquanto prepara seu jantar que será servido só quando o pai chegar.
Finalmente esse pai chega, moto-contínuo, beija seu filho e já pergunta sobre a agenda escolar, enquanto joga sua pasta em cima do móvel e sai assinando a circular do colégio que diz que alguma coisa acontecerá em algum momento, deixa de lado na esperança de ler mais tarde. Para e pergunta ao filho como foi seu dia, o qual não lhe responde pela razão que o seu “hard disk” está totalmente tomado pelo computador, TV e celular, e ao mesmo tempo a secretária empregada se aproxima, falando que precisa comprar produtos de limpeza com justificativas que o pai apenas consegue entender uma parte, que se refere ao gato, que foi adotado no intuito de ajudar a afetividade e responsabilidade de Bruno, mas que, pasmem, nem o gato nem o Bruno tomam conhecimento um do outro.
Resumo da cena: pai um pouco desorientado com o gato miando na perna dele, ele tentando chamar atenção do filho, filho pedindo um suco a Maria e Maria desfiando uma lista de produtos que sabe que o patrão não vai comprar e vai deixar cem reais em cima da geladeira para ela resolver (ai, dona inflação).
Finalmente, o jantar está servido, o pai conhece a primeira vitória da noite e o convence da TV ficar desligada, entre sobre-coxas, arroz, feijão e salada de tomate, alface e azeitona (mais uma vitória do pai, ele conseguiu abolir a batata frita), mas variar o cardápio já é outra história, Maria é meio conservadora quanto ao cardápio. Mas pasmem, senhoras e senhores, eles estão conversando um com outro, outro com um. Reitero minha afirmação, estão conversando e não é uma bronca sobre nota, suspensão ou botar fogo no rabo do gato.
O pai fala do seu trabalho, de forma sincera, na esperança que o filho comece a entender um pouco o mundo dos adultos para além do uso do cartão de crédito. Em seguida, em resposta, Bruno fala da professora de português… que se sente perseguido e coisa e tal, e sabem, alguns professores, sim, perseguem alguns alunos , e o pai ouve, fazendo um esforço para, automaticamente, não achar que é desculpa pela nota da redação. O filho pede para ligar a TV, e o pai a essa altura não vê mal nisso, mas veem juntos e, por incrível que pareça, o pai ri da besteira que passa na TV. Maria adentra a sala falando que tem manga, maçã ou abacaxi para sobremesa, outra vitória paterna , os doces e guloseimas foram abolidos nos dias de semana; como o abacaxi já estava cortado, decidiram não irritar a executiva do lar e aceitaram o abacaxi mesmo azedo por via das dúvidas. Melhor com ela, do que sem ela, esta é a filosofia das relações trabalhistas domésticas.
Saem da mesa, os dois com uma boa sensação, que eu diria ser o reflexo da ligação que existe entre eles. O pai senta no sofá , pega seu Ipad , liga a TV e disca no seu celular (aí me entreguei, discar é do tempo que o telefone tinha fio e uma rodinha no meio cheia de números e a linha telefônica custava uma fortuna) conserto: e tecla seu celular para ver se há alguma doce palavra no Whatsapp para ele. Por que ela sumiu? Mas logo sua mente volta–se para suas obrigações, ver se ele tem dinheiro para o lanche, assinar a circular (lendo antes de preferência) e perguntar se ele quer alguma ajuda nos deveres. Dom Hugo diz que tudo está bem e que pode deixar com ele, o pai, automatizado, já estava se virando para sair do quarto, tendo entendido que o filho queria ficar sozinho. Chega de pai, mas antes o filho afirma com uma voz estranhamente mais madura que a habitual que o pai parecia cansado. A resposta imediata: “não, filho, ‘ta tudo bem…”, já embargando a voz e os olhos mareados de forma bastante discreta, acudido pelo ângulo que suas costas fizeram com o menino. Aquilo o emocionou, mas, como muitos de nós, fez força para não chorar e começou a pensar no Playstation 10 que de repente sentiu vontade de dar ao filho, mas que precisava um álibi para tal crime. Mas salvo foi pela proximidade do Dia das Crianças e também sempre poderia dizer que foi uma oportunidade, já que um amigo trouxe diretamente de Miami (ai que mentira). Isto tudo para fugir das críticas que ele mima o filho (acusação comum a pais que se interessam pelos filhos) e nem dar margem a nenhum ínfimo pensamento de aumento da pensão alimentícia, horror dos pais divorciados.
As luzes então se apagam e mais um dia que finda.
“Boa noite, filho.” “Boa noite, pai, te amo.” “Te amo também.”
Acho que posso afirmar sem muita hesitação que a maior revolução nas relações familiares nos últimos cinquenta anos, não foi o divórcio, mas a entrada do pai na criação, cuidados e responsabilidade afetiva. Em famílias em que não ocorreu o divórcio, ou naquelas que ocorreu, a existência de um pai interessado e presente que se coloca para além do papel do provedor, e recusa a função de tirano que será apenas temido por seu papel de juiz severo quando a mãe exclama “vou falar para o seu pai”. Ao contrário, este assume sua responsabilidade sobre a educação, sobre o afeto, aquele que tem coragem de abrir mão de suas coisas pela proximidade com seus filhos, é este pai que faz a revolução na família, e, na verdade, garante a sobrevivência e a evolução da mesma como instituição. A entrada da mulher no mercado de trabalho e o divórcio abriram espaço para a emergência de um novo pai e quem sabe um novo homem para as mulheres também.
Sei que o divórcio gera mágoas, desavenças e até mesmo ódios sanguinários. Não é fácil, mas algo que aprendi nestes anos de trabalho com pessoas e famílias é que um bom casamento pode ser ótimo para os filhos, um mal casamento pode ser terrível para os filhos, um divórcio litigioso pode ser pior para os filhos, mas um bom divórcio pode ser tão bom quanto um bom casamento e não ser motivo de vergonha ou de estigma para ninguém. Desde que não haja alienação parental, desde que esse pai não fuja de ser pai e se transforme em pai de restaurante aos domingos de 15 em 15. O divórcio é uma consequência inevitável na história do casamento, na afirmação máxima de pessoas estarem casadas por vontade e não por obrigação, traz dores e esperança, mas também novos papéis para homens e mulheres.
Por uma nova família, por um novo pai, por um novo homem…