Depois de alguns meses no hospital seu fim era certo. A linha do coração num desenho sem forma na máquina de batimentos em frente aos seus olhos o fazia recordar de que a vida não passava de geometria. Quis percorrer as mãos pelo seu corpo uma última vez. Em vão, pela incapacidade, falta de força e coragem de se certificar de fato, que a doença já havia extirpado tudo que podia.
Sorriu ironicamente.
Pensou nos desejos que sentiu até ali.
Todos.
Até mesmo os mais mórbidos que agora, faziam parte do seu menu de vontades. Lembrou-se do amor e percebeu que nem o pior dos medicamentos tinha um gosto tão amargo. Pensou no rosto doce de quem amou durante todos esses anos. Sentiu o arrependimento e quis tratá-lo. Toda aquela impotência ao saber que lhe restariam apenas algumas horas, transformou-se na impulsão ausente dos últimos anos. “Bem feito!” gargalhou ao pensar que antes o pensamento privava o corpo e que o inverso seria impossível. “Preso por cadarços” – constatou e em seguida serrou os olhos ouvindo a sinfonia do marca-passo. A mesma sensação de tormenta de sempre, assitir sua libido retalhada pelo achismo alheio e o desejo terminar de consumir o corpo. “Pra onde o ressentimento vai? Deve se espalhar como veneno pelo corpo, consumir os rins, fígado, estômago, pâncreas, pulmão até fulminar o coração. “Nem ao menos posso me contorcer.” Na sua analogia o cérebro não aparecia a “casa” dos seus pensamentos, possuía fortalezas demais para ser atingido.
Por instantes queria uma chance de refazer tudo ou somente viver de novo os mesmos equívocos. “Morrer é fazer uma lista imaginária das verdades que eu não poderia dizer em voz alta, nem pra mim mesmo. É ser enfim, quem realmente sou.”
O corpo se enrijecia.
De amor.
De fim.
De remorso.
De um tesão absurdo, reprimido por tanto tempo.
Quis se tocar uma última vez e sofreu a rejeição de si mesmo. A sua vida até então parecia tão extensa que não parecia ser verdade que seu tempo caberia naquela ampulheta pequena, mensurada por uma areia que, pela finura, corria muito mais rápido do que gostaria.
A última coisa que lhe ocorreu foi o desenho frequente de altos e baixos da máquina cardíaca. Construiu em última instância uma analogia mental da sua própria vida até ali e antes de ir, mesmo sem a paz que muitos lhe desejariam, concluiu “a vida não passa de oscilações”.