O Menino Deus é um bairro sério. Tão sério, que quando a Banda da Saldanho desfila pela Getúlio Vargas, puxando um cordão imenso de foliões, gente feliz e boêmia, seus moradores se deliciam nas janelas, inertes, como figuras em molduras. Do meu quadro observo os prédios na proximidade: estamos todos sóbrios, mas irrequietos com o paganismo daquele povo. Alguns de nós sacodem os ombros, outros apontam para algum espetáculo particular na avenida e minha filha pensa por quê, afinal, domingo continua com aquele gosto de ressaca, se lá fora está com cara de dia nenhum.
Aos poucos a Banda da Saldanha avança em direção à Ipiranga, como se buscasse novos quadros e molduras no museu do Menino Deus. Visconde do Herval, Botafogo, Ganzo, 17 de Junho, Marcílio Dias, todas estas ruas e seus prédios nas esquinas guardam mais do que parte da história de Porto Alegre. Em verdade, guardam um capital humano em franca depreciação e em fuga.
Se você, por acaso, cruzar pelo Menino Deus, dê uma parada na esquina da Getúlio com a Botafogo. É ali que a Bolsa de Valores Humanos ainda mais agitada. Poucos metros para dentro da segunda, à altura de um sobrado que abrigava uma dezena de sem-tudo e no exato limite entre as duas, o Jorge prepara sua fuga há algum tempo.
O Jorge é um cara sério, mas tudo bem, no Menino Deus todo mundo é sério. Nunca conversei com ele. Só sei que faz um ano que está desempregado, mesmo tempo que seu diploma de analista de sistemas ornamenta a parede do quarto. Primeiro, todos achavam que o Jorge ia se suicidar. Desde a última passada da Banda da Saldanho ele teimava em ficar na moldura da janela do seu apartamento. Nada mais lógico: desempregado, por dois meses, dia e noite na janela, mulher, dois filhos, aluguel, condomínio, telefone, tudo atrasado, o sentido da vida só pode ter se perdido, concluíam os vizinhos.
Dia desses, a agitação foi frenética no Armazém que faz esquina com a Getúlio. Jorge era defenestrado por priorizar o pagamento dos juros do Banco em que tinha conta corrente, em detrimento da prestação do colégio dos filhos, do aluguel e até diziam, da alimentação da família. Dona Ieda – uma espécie de oráculo do Bairro – vaticinava “que a responsabilidade fiscal do Jorge levara a família à mingua”.
Mas o Menino Deus é um bairro sério. Da mesma forma como assiste ‘durinha’ a Banda da Saldanho passar, vê o Jorge minguar na janela e os sem-tudo apodrecerem ‘poucos metros pra dentro da segunda’ e tudo isso não é com ninguém, como gosta de repetir a Dona Ieda, sem conhecer pessoalmente o Jorge e ter medo dos sem-tudo. Com setenta anos, mais vale sua sabedoria do que sua disposição de fazer alguma coisa. O que é razoável. Até porque, me revelou, sua aposentadoria não daria conta de todos os Jorges e de todos os sem-tudo do Bairro, coisa que, segundo ela, era perfeitamente administrável há um, dois anos atrás.
O que aconteceu, pergunto a uma Dona Ieda orgulhosa de ter sido convidada para um café em meu apartamento:
– Coisa simples rapaz – fala olhando para a janela da sala. – Meu pai criou a mim e a cinco irmãos. Era brigadiano, minha mãe dona de casa. Foi soldado, sargento, capitão. Papai lia muito, escrevia com prazer, ajudou a construir a Igreja do Menino Deus. Tinha uma auto estima lá em cima e a janela lá de casa, na 17 de Junho, servia para intermináveis conversas com os vizinhos sobre coisas simples. Falávamos sobre a família, o ‘itinerante’ que dormia na Baronesa e que ajudávamos, o almoço da quinta-feira ou a festa de aniversário da Dona Mocinha, que sempre era um evento.
– Sim, mas o que isso tudo tem a ver com o que acontece com o Jorge e os sem-tudo? – pergunto sem deixar de perceber uma ponta de ironia em seu rosto.
– Rapaz, linguagem, auto estima e sentido para viver. Papai tinha responsabilidade conosco em primeiro lugar. Às vezes devia pro seu Edgar que emprestava, mas pagava depois de separar o que era do sustento da família. Mesmo assim, aqui no Menino Deus ninguém ficava na janela olhando um ‘itinerante’ apodrecer. Papai cansava de desviar um pouco para abastecer o seu Armando, que vagava pra lá e pra cá sem sentido. Auto estima porque estudava e ganhava, tinha emprego. Nunca nos passou pela cabeça que passaríamos necessidade ou coisa parecida. Era só estudar, dizia o papai. E sentido pra viver: a conta do Armazém, do rancho da Brigada Militar, da prestação da casa, do armarinho, nunca foram empecilhos para que acordássemos todos animados e dispostos e dispostas a um baile de máscaras ou a fim-de-tarde na janela lá na casa da 17 de Junho. É por isso que cada vez que um amigo ou uma amiga anunciavam que iam embora para a Europa, ficávamos doentes e tristes. Papai e Dona Mocinha diziam que isto era uma fuga de capitais que prejudicava Porto Alegre, o Rio Grande do Sul e o Brasil. Hoje, ninguém dá muita bola pra isso. Já pensou se o Getúliio, o Jango, o Brizola, o Antônio Ermírio, o Celso Furtado tivessem ido embora? O país não seria o que é hoje!!
Era isso!! Linguagem, auto estima e sentido pra viver. Fazia uma hora que ouvia Dona Ieda e observava o edifício em frente ao meu. Jorge não estava mais lá. Entusiasmada, Dona Ieda não pôde ouvir a algazarra da Bolsa de Valores Humanos do Menino Deus. Meu celular tremeu com a mensagem de que mais um brasileiro foi embora para o exterior, em busca de linguagem, auto estima e sentido pra viver. É a fuga de capitais humanos que prossegue no seu ritmo assustador.
Enquanto Dona Ieda me empresta suas lembranças, fico imaginando Jorge não se furtando a abandonar seu país, esta ilha que é Porto Alegre, em busca da felicidade que, como sustentava Epicuro, é a ausência de dor. Dor: será que Papai e Dona Mocinha desceriam para dançar com a Banda da Saldanho neste Menino Deus, nesta Porto Alegre, cercados pelos sem-tudo?