Na segunda metade do século XIV existiam nada menos que 173 castelos em Portugal. Dúzias destes castelos se mantêm até hoje e são um dos principais atrativos turísticos para quem vai conhecer o país. O mesmo se repete na Espanha, Inglaterra e em quase todo o resto da Europa.
Os turistas se maravilham com as muralhas e torres imponentes que resistem há séculos, enquanto buscam identificar qual a tendência arquitetônica de construção, se é um castelo românico ou gótico.
O que não fica evidente aí é o porquê da existência de tantos castelos e como a sua existência é contrária ao espírito civilizado e socialmente responsável dos seus cultos visitantes atuais.
Os castelos e fortalezas foram construídos em uma época onde o comércio e a produção eram primitivos, como consequência, um período sem chuvas resultaria numa colheita ruim que condenaria os habitantes de uma região a escolher entre passar um ano de fome e miséria, ou mobilizar seus homens para saquear a produção de seus vizinhos. Existiam também, como existem até hoje, grupos que se abstinham de produzir e faziam do roubo o seu estilo de vida.
A função fundamental dessas fortalezas era defender, preservar o pouco que se tinha do ataque de povos vizinhos. Seus estilos de construção não são um capricho estético de déspotas excêntricos, mas sim uma evolução militar.
Os castelos românicos, por exemplo, eram caracterizados por uma postura militar mais passiva, planejados para suportar intensos ataques e abrigar uma parte da população. Isso se refletia na sua arquitetura, estes castelos tinham muralhas mais espessas e poucas torres.
Já os castelos góticos davam ênfase nos contra-ataques, por isso o número maior de torres, que serviam aos arqueiros, e as muralhas não eram tão espessas, porém bem mais altas, e contavam com os ‘barbacãs’, que eram muralhas mais baixas antes das principais para evitar que as armas inimigas chegassem até estas.
Os castelos são símbolos de um tempo onde as pessoas não viviam em paz. O risco de saque era sempre eminente. Não existia mobilidade social: ou você nascia na nobreza, ou estava destinado a uma vida de privações. Até 1800 uma parcela ínfima da população passava dos 30 anos, mesmo em 1855 em uma Alemanha bastante civilizada a expectativa de vida não passava dos 37,5 anos. E é essa a história do mundo, seja nos castelos europeus ou nas tribos das Américas, o roubo, a fome, a privação e a guerra foram a rotina dos nossos ancestrais.
O que mudou esse cenário foi o comércio. O dinheiro substituiu a espada. Aos poucos as pessoas perceberam que a paz era a melhor escolha, que só com paz era possível ter poupança (seja de dinheiro ou de grãos) e não depender exclusivamente de condições climáticas, e então zelar por um comércio pacífico era uma grande vantagem para a sociedade.
Comércio só existe com dinheiro. Ele é um meio de troca, que por ser comumente aceito permite que ocorram negócios entre diferentes pessoas e culturas (discutir o que o estado fez com o nosso dinheiro é outra história). A moeda e o comércio são os principais responsáveis pela paz e não o contrário.
Frédéric Bastiat, economista francês do século XIX, dizia que não se deve ‘esperar senão duas coisas do Estado: liberdade e segurança, e ter bem claro que não se poderia pedir uma terceira coisa, sob o risco de perder as outras duas.’
O que se viu nos últimos dias foi um retrocesso. Lojas foram saqueadas, casas, carros e lojas depredados. A Polícia, instituição estatal responsável pela segurança, julgada pela opinião pública se mostrou inapta, permissiva e confusa sobre como agir, e sua permissividade deu a ladrões e vândalos o aval para repetirem atos de infração por dias seguidos.
Não houve respeito à propriedade alheia, e este respeito é um dos pilares que mantêm a paz na nossa sociedade. É impossível relativizar com o roubo, depredação e violência. Vi nos últimos dias alguns idiotas justificando os atos como um efeito colateral, um respingo de tudo que o povo vinha suportando há tempos. Essa abordagem é perigosa, não existe relativização quanto ao certo e o errado.
Sobre o povo e a democracia Pondé[1] tem um artigo ótimo, em um trecho ele lembra que: “Quando [o povo] aparece politicamente, é para quebrar coisas. O povo adere fácil e descaradamente (como aderiu nos séculos 19 e 20) a toda forma de totalitarismo. Se der comida, casa, e hospital, o povo faz qualquer coisa que você pedir. Confiar no povo como regulador da democracia é confiar nos bons modos de um leão à mesa. Só mentirosos e ignorantes têm orgasmos políticos com o ‘povo’.”
Se uma pessoa sozinha resolve deitar-se na Avenida Paulista com o objetivo de impedir o trânsito, e recusa a retirar-se mediante pedido da autoridade responsável por manter a ordem. Essa autoridade tem a autonomia de usar a força para retirá-la, afinal, na convenção social que chamamos de cidades, as ruas são espaços destinados a locomoção, e o espaço destinado aos carros serve para locomoção destes.
Assim como um carro não pode bloquear o trânsito de pedestres em uma calçada, um pedestre não pode deliberadamente bloquear o livre trânsito dos carros em uma rua. Se essa lógica é correta para uma pessoa, não é o fato de haverem 10 mil, ou 1 milhão de pessoas incorrendo neste erro que transforma algo errado em certo.
A massa reunida raramente é pacífica. Uma aglomeração que interfere na vida de pessoas que não querem participar desta causa, independentemente de quais sejam essas causas, não pode ser considerada pacífica.
Quando uma multidão bloqueia avenidas, interferindo na vida das pessoas que precisam acessar suas casas e negócios, nos roteiros dos ônibus que prestam um serviço ao público, no direito de ir e vir de outras pessoas. Isso não é pacífico. É legítimo que quem se sinta lesado solicite à instituição que zela pelos direitos dos cidadãos que aja.
O proprietário que tenha seu negócio atacado, que seja roubado ou que tenha qualquer tipo de dano, deve ter a garantia de que isso foi um ato isolado e de que ele não precisará contratar serviços de seguranças privados para zelar pelo seu patrimônio (a lógica dos castelos). Ou que, se precisar contratar estes serviços, eles possam fazer uso da força para preservar sua propriedade sem serem, posteriormente penalizados pelo Estado.
Algo só pode ser considerado pacífico quando não prejudica de maneira alguma nenhuma outra pessoa indiferente a causa. Não são gritos de “sem violência” que legitimam um movimento totalitário como pacífico.
Nelson Rodrigues estava certo quando disse que a pior desgraça da democracia é que ela deu aos idiotas a consciência de seu poder numérico.
Não é por acaso que um número significativo de pessoas envolvidas nos atos mais extremos nutra certo desprezo pelo dinheiro. A moeda serve para troca, saqueadores sempre preferiram usar a força e o roubo.
[1] Luiz Felipe Pondé – Guia Politicamente Incorreto da Filosofia