Rimos muito quando ele falou que seria um ótimo negócio um plantão psicológico online no dia de Natal e em tom jocoso disse que se poderia cobrar dez vezes o valor usual da sessão. Ele, um cliente velho conhecido, daqueles que o analista acaba sendo íntimo de certa forma, acaba fazendo parte da família terapêutica do analista. Tinha-o conhecido quando ele fazia residência em psiquiatria e eu, uns poucos anos mais velho, tentava sobreviver como psicoterapeuta. Bem, em resumo, ele teve seu processo psicoterápico junto a mim, saiu e, em momentos de dificuldades ou crises ou como ele mesmo fala , “para ter uma consultoria”, ele retorna ao meu consultório. Agora nós ganhamos alguns quilos e cabelos brancos. Consegui sobreviver como psicoterapeuta e ele se tornou um famoso psiquiatra especializado em dependência química; o que o faz ter mais cabelos brancos do que eu. Mas eu consigo lembrar do que ele falava das festas em família, especificamente dos Natais…
Tenho uma memoria paquidérmica sobre as histórias dos meus clientes, mas quanto a minha rotina diária sou quase um modelo de Alzheimer, é incrível como a memória se especializa de acordo com as necessidades e sentimentos de nossas vidas, mas voltando ao tema do texto, ele me contava que ficava sempre aflito nas ceias de Natal quando era criança e adolescente por dois motivos: um, pelo presente que ia ganhar(na família dele o principal presente do ano era no Natal mais que no aniversário), outro que seus pais tendiam a beber um pouco mais e, ao final, as chances de ter uma briga eram grandes ou, pelo menos, um clima não tão natalino. Ao longo dos anos, a aflição positiva de ganhar um presente (nós chamamos de ansiedade) e a ansiedade negativa de temer o conflito foram se mesclando,a ponto que durante muito tempo de sua vida ele detestava ganhar presentes que achava que seriam sempre uma decepção. Suas memórias mesclaram. Seus pais já faleceram, mas os sentimentos não. Até hoje, ele precisa fazer uma força enorme para não ficar ensimesmado na ceia de Natal e poder curtir com seus filhos e esposa. Ele sente um grande alívio quando a ceia acaba e tudo deu certo. Como consequência de toda esta tensão, ao longo de anos foi-se estabelecendo um comportamento que a princípio era para tentar minorar a ansiedade, que consistia emcomprar quantidades industriais de comida e sempre presentes no mínimo em duplicata para seus filhos, na tentativa de que o Natal fosse maravilhoso e nada desse errado, mas em relações humanas nem sempre mais é melhor e este comportamento acabava não tendo nenhum efeito no alívio de sua ansiedade.
Ele é bem consciente de todo este processo, nos 364 dias do ano este núcleo de decepção não o afeta mais e é coisa “superada” (na verdade não superamos nada, apenas entramos em acordo com nossas dores), mas naquele dia fatídico da ceia de Natal é como um portal direto para o passado que se abre, turbinado pela necessidade de ser uma noite feliz que, para muitos, é uma noite de tensão e ansiedade.
Um feliz Natal e que o fantasma dos Natais passados não venha rondar a nossa mesa e que possamos perceber que em alguns dias virá o ano novo, prometendo renovação e novas esperanças de construir famílias que não sejam tão pesadas…