Primeiro Ato:
Um mal estar parece nos fazer afundar na insegurança. De tempos em tempos, “assim caminha a humanidade”. Mas alguém pode dizer, e com razão, que a trindade imemorial do homem – o Faber, o Sapiens e o Ludens – atua noite e dia, criando e oferecendo aos consumidores novas tecnologias, artes inovadoras e uma avalanche de entretenimento. E um cético não resiste: “mas onde se escondem os demônios?”
Às vésperas de 1914, o mundo ocidental servia beleza e inovações em grandes feiras. Na Feira de Paris, os frequentadores mal escondiam o espanto diante de tanta criatividade. Cada cidade e cada país competia para mostrar que os seus Fabers, Sapiens e Ludens, eram muito superiores dos que os da concorrência.
Enfim, o mundo parecia caminhar para frente, em linha reta e sem limites. Tudo isso até que todos se dessem conta de que os demônios se fantasiavam de Imperadores. E tanta criatividade, tanta inovação, tanta beleza, não foram suficientes para impedir que 1,2 milhão de vítimas fossem empilhadas nas trincheiras, ao longo de cinco meses, na Batalha do Somme, a mais sanguinária de todas as matanças da Primeira Guerra Mundial.
Segundo Ato:
Os fatos que definem uma época não ocorrem de uma hora para outra, como se saíssem de compartimentos secretos. Eles são as sínteses de milhões de combinações, dos milhões de atos praticados aqui, lá e acolá. É como se sob as calçadas que pisamos, um frenesi imperceptível na superfície, construísse, dia após dia, um novo conjunto de significados, materializados a partir do que há de melhor e pior nos palcos das cidades, onde se apresenta a “vida activa” da espécie humana e suas faculdades de pensar, julgar e agir no mar aberto das possibilidades postas pela imaginação. É da sua capacidade de operar milagres, que os humanos transformam os espaços vazios, objetivos e subjetivos, em valores, crenças, ação política e civilização.
De um fato singelo, diante da complexidade de uma cidade, podemos entender por quê, em dado momento, uma cidade está imunda. Para isso, precisamos escapar das armadilhas do senso comum, do tipo “a cidade está desse jeito, porque o Poder Público não a limpa”. Muito bem, até pode ser que o serviço de limpeza, em dada cidade, não seja lá essas maravilhas, mas o fato que originou essa minha percepção sobre o cuidado da cidade não é esse. O fato é que milhares de pessoas a sujaram com seu lixo pessoal, doméstico e por aí vai.
Vamos adiante. Todas as pesquisas, há alguns anos, apontam que as pessoas se sentem inseguras. E, quando perguntadas a forma de resolver isso, muitas disparam: “mais policiamento nas ruas”. Contudo, para entendermos por que a segurança é um fato que define nossa época, seja aqui, em Nova York, Tóquio, Paris, Buenos Aires, Londres, precisaríamos conversar com os trabalhadores altamente qualificados que, de uma hora para outra, perdem seus empregos nas empresas de alta tecnologia e no sistema financeiro; com os trabalhadores pouco qualificados que não encontram mais tarefas para realizar, apodrecem nas periferias, tornando-se mão de obra recrutável pelo crime; com os jovens que, no alvorecer das suas capacidades, são alçados a desempenhar tarefas para as quais não têm a firmeza de dizer não; com os “cidadãos consumidores” que lotam os Centros Comerciais em busca da recorrentes novidades e esvaziam as Praças e Parques, os Centros Comunitários, os encontros de amigos, o espaço público de convivência; com as famílias, cujo caráter foi corroído pelo retorno da “oficina” para o ambiente doméstico, ao mesmo tempo em que transforma o trabalho numa atividade solitária e flexibiliza a divisão do tempo ; com as crianças, que nunca ouviram falar de empatia, simpatia e sobretudo não sabem o significado da palavra Juntos; com apenados que estão reclusos porque praticaram o pequeno tráfico ou pequenos furtos e se perguntam o motivo pelo qual o presídio está vazio daqueles que praticam crimes contra o meio ambiente, sonegação de impostos, desvio de dinheiro público.
Os grupos com os quais poderíamos conversar, para ‘compreendermos’ esse profundo mal-estar, que paira entre nós e constituem nosso mundo comum, são recortes infindáveis da nossa época, mas que quando colados, combinados, com rigor analítico – a simples, mas não corriqueira faculdade de pensar – podem tornar mais nítido de que segurança estamos falando.
Se damos uma longa olhada nas nossas cidades – o que exige uma fuga do fluxo constante e uma ancoragem na permanência e no pertencimento – temos a oportunidade de perceber o quanto nossa omissão tem custado caro à vida em sociedade e também o tamanho do buraco em que nos metemos. Mas o que de fato causará assombro é esse papel que aceitamos desempenhar, que não faz parte de um roteiro trágico – mesmo que leve a ele – de uma comédia, de um drama. É um papel sem discurso, raso de diálogos, esteticamente sofisticado, e que não faz rir, chorar, representar o mundo das calçadas, porque aquilo que encenamos é um personagem bobo, superficial, egoísta, sem conteúdo e que por tudo isso nos resume a consumidores insaciáveis de bugigangas, sempre renovadas, indiferentes ao que é público, dependentes do entretenimento para preencher o tempo e dar sentido à vida. E um bobo, desculpem, não pode instituir nada que sobreviva no tempo. Não faz permanecer no tempo afetos, famílias, construções, memória, arte, muito menos instituições que renovem as cidades, a democracia e a política.
Como foi que seres utópicos acostumaram-se com a distopia, ainda é motivo para vários estudos nas ciências humanas. Humanos que se aventuraram num mundo inóspito, cruzaram continentes para se fixarem em comunidades e depois em grandes cidades. Humanos ansiosos por permanecerem para sempre no mundo, que para isso inventaram a possibilidade de vida após a morte; que quiseram ser lembrados pelas construções majestosas, cantos e poemas; que se eternizaram na ideia de Nação e nas obras dedicadas às suas comunidades.
Se a experiência e o saber acumulados nos ensinaram que é preciso “ver a floresta, para depois enxergar as árvores”, no mundo distópico em que vagamos de loja em loja temos ensinado às novas gerações que a sobrevivência depende da capacidade que temos em correr todos os riscos possíveis, e que a ética do trabalho e o ethos que move a sociedade é, em verdade, um jogo em que poucos ganham e a maioria perde. Temos permitido que nossos jovens sejam atraídos para a visão boba de que toda mudança em si mesma é positiva e necessária e que mais importante do que “entender o sistema, é preciso agir como aplicativos”. A tal ponto que transformar as cidades em lugares felizes passa a depender de quantos aplicativos somos capazes de produzir. Não há florestas neste mundo, não há pessoas, não há assuntos relevantes a serem tratados, não há nada para fazermos juntos.
Intervalo
Voltamos depois para os próximos dois atos.