Num dia desses, assisti a filme chamado “White Frog” (sapo branco, numa tradução livre). O filme inicia-se enfatizando a relação de amizade entre os dois irmãos da família Young: Nick (Booboo Stewart) e Chaz (Harry Shum Jr.). Nick nasceu com Síndrome de Asperger, razão pela qual enfrenta algumas dificuldades de interação social, tal como a fobia de falar em público. Chaz, o irmão mais velho, ajudava Nick a desenvolver suas habilidades sociais por meio de um “treinamento de modificação comportamental”. A família Young, assim como outras várias famílias espalhadas pelo mundo, tinha um ideal de “perfeição” e regras de conduta social. Tudo corria “perfeitamente” bem, até que Chaz, o filho varão primogênito, atleta e orgulho da família falece. Tendo em vista este acontecimento, um dos amigos de Chaz convida Nick para a “confraternização de sexta-feira a noite” (mesa de “poker”), realizada na casa de Randy (Gregg Sulkin), pois se tratava de um evento no qual Chaz sempre estava presente e a interação com os amigos deste poderia ajudar o garoto a lidar com a dor da perda. Num certo momento, Nick descobre que Chaz e Randy eram namorados, protagonizando uma das cenas mais impactantes do filme. Arvorando-se em argumentos como “isso é proibido”, “isso é contra as regras”, Nick profere toda a sorte de xingamentos contra Randy (e virtualmente também contra Chaz), chamando-o de “hipócrita”, “mentiroso” e “aberração nojenta”.
Essa cena, em especial, pôs-me a pensar. Todas as pessoas são criadas de alguma forma, todas as pessoas interagem, em maior ou menor grau, em sociedade. Os valores da família (não estou aqui a falar, necessariamente, em pai e mãe) e os valores da sociedade são internalizados por nós durante todo o processo de aprendizagem e de formação da identidade. Isso significa que, a princípio, nós não somos nós, pois somos, na verdade, esse conjunto de valores internalizados durante o processo de sedimentação da identidade.
Acontece que esse processo de formação da identidade é dinâmico, prolongando-se por toda a vida, na medida em que somos chamados a responder aos mais variados estímulos externos da vida em sociedade, que nos fazem questionar, a todo momento, os valores internalizados. É a síntese dessas proposições dinâmicas e do questionamento dos valores internalizados que enseja a construção da identidade do “eu”.
Infelizmente, as pessoas estão tão agarradas a esses valores internalizados, que não se permitem questioná-los. Assim, observamos a perpetuação da identidade comunitária (a identidade do “nós”) em detrimento da identidade do “eu”, o que causa conseqüências extremamente desagradáveis do ponto de vista sócio-antropológico, tal como a manutenção do “status quo”.
Veja o Nick, por exemplo, embora seja diferente, embora sempre tenha sido incompreendido pelos seus pais, não conseguiu se desvencilhar (pelo menos inicialmente) dos valores que internalizou da família, principalmente os ideais de perfeição e regras de condutas impostas pelos pais, de modo que, na primeira adversidade (descobrir que o irmão mais velho era “gay”), não soube aceitar a diferença do outro, de modo que condenou aquele que mais amava, aquele que o mais respeitava e aquele que o mais tratava com dignidade. A diferença fez com que o outro não tivesse mais importância, pois a prioridade não era aceitar o outro enquanto ser humano, dotado de sua própria identidade, mas sim “seguir as regras”.
É claro que, no decorrer do filme, a identidade de Nick, em contato com as várias visões de mundo e, principalmente em razão de constante reflexão pessoal, sofre algumas transformações. Nick passa a aceitar a identidade de seu falecido irmão, sob a premissa de que todas as pessoas são diferentes. O questionamento dos valores internalizados torna-o livre para aceitar a diferença do outro. Nick desprende-se daquela identidade determinada pelos valores do “nós”, para consolidar a identidade do seu “eu”.
É aqui que o arco argumentativo se completa, explicando-se o título do referido filme. Num vídeo gravado por Chaz, antes do seu falecimento, este explica que o povo vietnamita, há muito tempo, comia carne de sapo com aroma de coco. Para tanto, faziam um pequeno corte na referida fruta e introduziam nela um girino. Algumas semanas depois, o coco era aberto e lá se encontrava um sapo cego, com a pele branca, lisa, macia e com aroma de coco. O coco representa esses padrões de perfeição e regras de conduta impostas pela família e pela sociedade. Os girinos são todas as pessoas, que se transformarão no sapo branco, cego em razão desses valores que nos oprimem a sermos perfeitos.
Portanto, cabe a cada um de nós decidir se aceitaremos a clausura do coco e nos tornaremos o sapo cego e frágil, pronto a ser devorado, ou se questionaremos os valores impostos pela família e pela sociedade, de modo a construir nossa própria identidade, para o fim de aceitar as diferenças do outro e construir uma sociedade efetivamente livre (de preconceitos, de padrões de perfeição, de regras de conduta). Então, questione-se: você é você mesmo, ou você é um sapo cego?