A história de Clara sempre me fez pensar. Ela era uma menina linda e seu nome, escolhido pelo pai, foi uma homenagem dia mais iluminado de sua vida. A propósito, seu pai é um homem absurdamente culto, filho de médicos na França, continuou o gosto pela medicina e se tornou o principal cirurgião de um grande hospital de lá. Foi numa das suas cirurgias que conheceu sua esposa, uma advogada brasileira muito conceituada, com as férias em Paris interrompidas devido a um mal súbito.
A história de Clara começa nesta quase tragédia onde seus pais puderam se conhecer. E não demorou muito, desde o episódio do hospital, para se casarem. Decidiram vir morar no Brasil porque a esposa não podia deixar o trabalho aqui, mas combinaram voltar para Europa logo que se aposentassem e aproveitariam a tranquilidade da velhice por lá.
A menina nasceu pouco tempo depois da chegada deles no Brasil. A família fez uma festa enorme com seu nascimento, não queriam mais filhos e ela cresceu em berço de ouro. Estudou em uma das melhores escolas do país, fez o ensino médio na Alemanha e voltou para o Brasil porque não aguentou de saudade de casa. Era querida por todos, frequentava festas particulares nas mansões das amigas, gostava da moda italiana, era apaixonada por literatura e pelo Van Gogh. Sempre admirou a mãe pela competência na profissão e queria ser assim, porém dentro do ofício do pai. Nem precisou se esforçar muito para ingressar de primeira na melhor universidade de medicina do país e foi lá que conheceu Geruza, a única bolsista do curso.
As duas se aproximaram porque Clara, curiosa, queria saber as razões pelas quais aquela menina queria ser médica, mesmo vindo de tanta pobreza e como alguém da favela conseguiu passar numa universidade tão conceituada e concorrida como aquela. Para ela tudo isso era novo e intrigante. Geruza já estava acostumada com muita coisa na vida e já sabia o que estava por vir. Sabia que seriam seis anos carregando o estigma de bolsista, de discriminações pelas simplicidade e passaria ainda por muitos questionamentos meritocráticos. Estava preparada pra tudo, sempre munida de argumentos.
Contudo, com Clara foi diferente. Apesar das roupas de grife e do vocabulário impecável, Geruza gostava do jeito que se importava e se sentiu confortável em responder as perguntas de alguém que só conhecia a pobreza pelos jornais e revistas que lia. Tornaram-se melhores amigas e Clara, diante da nova experiência, achou justo carregar a chaga de bolsista com Geruza.
Quase perto de se formarem, Clara levou Geruza para seus pais conhecerem a tão famosa amiga. Entretanto, para o espanto das duas, seus pais foram hostis, distantes e categóricos. Esperavam uma amizade no nível da filha e não aquela “Zé ninguém” diante deles. Questionaram de onde ela vinha, quem eram os pais, o que faziam e Geruza ficou atordoada com aquela situação. Sentia-se confusa, mas por amor à amiga, respondeu as perguntas, contou que era da comunidade do Morro, a mãe era diarista e o pai era um turista sul-africano desafortunado que a abusou e nunca mais foi visto. “Estou aqui graças a generosidade da minha mãe, que mesmo violentada, decidiu que eu poderia o melhor acontecimento de sua vida.” Foi olhada com mais repúdio. Cansada daquela situação nauseante diante tanto preconceito, Geruza quis ir embora antes que perdesse a linha e começasse a falar o que não deveria.
Mesmo contra o gosto dos pais, Clara decidiu levá-la em casa. Era o mínimo. Antes de sair, seus pais lhe chamaram para uma conversa e deixaram bem claro que não queriam a filha com aquele “tipo de gente”. Ela deu as costas, entrou no carro e no caminho não falaram muita coisa.
O silêncio só foi interrompido com o pedido de desculpas quase choroso de Clara, que imediatamente pediu para ir conhecer a mãe da amiga. Geruza nunca conseguiu dizer não a ela e apesar de arrasada e confusa com tudo que havia presenciado, aceitou. Ao chegar às proximidades, pediu para que estacionasse o carro ali. As ruas não comportavam um veículo daquele tamanho e ele chamaria atenção demais. Subiram pelas ruelas e Clara estava perplexa diante daquele cenário. Chegaram e a casa era simples, apenas uma porta de entrada e poucas janelas. “Essa aqui é a Clara, mãe. Aquela amiga que eu te falei”.
Dona Cleusa se ajeitou e foi cumprimenta-la. “Mas ela é…” Geruza fixou os olhos seriamente na mãe, uma proibição para que não terminasse o que ia dizer. Clara a abraçou com ternura e dissertou sobre a felicidade de estar ali. Dona Cleusa decidiu esquentar a janta e Clara ficou sentada no sofá pensando sobre a sua vida até aquele momento. Sobre aquele mundo tão distante e as dificuldades que as pessoas passavam enquanto ela torrava seu dinheiro em roupas e festas. Engolia suas analogias a seco. Quando jantou não conseguia acreditar que aquela comida comum podia ser inacreditavelmente gostosa. “A senhora parece a minha mãe”. Dona Cleusa saiu pensativa e foi buscar um suco na geladeira.
Terminaram e Clara ao ver as horas, se apressou para que o conflito em casa não fosse maior. Despediu-se de Dona Cleusa, agradeceu e prometeu voltar. “A casa está sempre de portas abertas, minha filha” e acenou um tchau cheio de perguntas. Elas desceram pelas ruas, agora um pouco mais aliviadas pelo constrangimento todo. Riram como sempre e marcaram de estudar na biblioteca. Porém o destino de Clara mudaria. Em frente ao seu carro, um tiro certeiro no tórax, ceifou seus planos.
A polícia-milícia fazia ronda e num ato de vingança, confundiram-na com a mulher de um traficante. Por azar tinha um veículo idêntico ao dela e por infortuna coincidência, eram parecidas. A mulher procurada gostava de roupas caras, alisava o longo cabelo, era magra e negra, como Clara. Geruza desesperada ligou para emergência e usou ali todos os recursos, todas as técnicas aprendidas até o socorro chegar, enquanto Clara se esvaía e pensava como a vida era mesmo engraçada. A injustiça do julgamento sem fundamento de seus pais voltava a ela em poucas horas. “Sem tempo de fazer justiça”, pensou. Os bombeiros chegaram primeiro e viram que já não podiam fazer mais nada. O possível já havia sido feito. Geruza chorava incrédula no corpo da amiga quando um dos bombeiros soltou o alerta “Acho melhor você tirar seu carro daqui, moça. Eles não gostam de gente de fora, ainda mais com essa cara de gringa.”
A consciência negra não tem como princípio a busca por obtenção de privilégios e sim de direitos. É um dia de desapropriação de situações como o preconceito, de visibilidade de atitudes invisíveis tão naturais e enraizadas como a sua, por exemplo, ao ponto de imaginar durante toda história, que Clara era branca e Geruza a negra.
Sim o preconceito e algo que tem que cada vez mais ser mostrado e falado sobre isso. O texto e D mais, muito bom e real