Luis XVI, rei da França, teve todas as oportunidades para entrar para a história com a cabeça sobre os ombros. Preferiu servir de inspiração aos pintores, oferecendo sua imagem disposta sobre o cadafalso. Por que esta escolha? Por que tanta hesitação? Por que decidiu, nas palavras de Max Gallo, “enfiar a cabeça entre os ombros quando a tempestade começasse, mas a não ceder em nada; apenas na aparência”?
Vários são os episódios de hesitação na história da política, sobretudo em momentos onde sabemos o que está sendo destruído, mas muito pouco sobre o que virá. Hannah Arendt denomina-os de “tempos interessantes”. Pois não é que estamos mergulhados num destes “tempos”?
Como a inflação hoje no Brasil, fazemos que não é conosco a profunda crise das instituições clássicas da democracia, processo que se agudizou com o colapso do socialismo realmente existente, simbolizado pela queda do Muro de Berlim. Desde então, a democracia, tal qual a conhecemos há mais de duzentos anos, e a política, tal qual a praticamos, sobretudo no período que compreende o final da Segunda Guerra Mundial aos dias de hoje, não encontram um suspiro de representatividade e legitimidade.
Incrivelmente as coisas só pioraram e não param de se degradar. No Brasil, como de resto em muitos outros países, o sistema político foi tomado de assalto por este fenômeno social que submerge por longos períodos, para voltar com mais força ainda.
Falo da “ralé” como extrato social, no qual se agrupam fragmentos de todas as classes, mas que não se confunde com o “povo”. Ela ocupa o espaço público deixado vazio pelo desinteresse crescente de setores médios das sociedades, que refluem para o espaço privado à medida que melhoram suas condições de vida e transformam o consumo numa virtude a ser imitada.
A “ralé” que realiza o ideal hobbesiano da suspensão da humanidade em nome do individualismo exacerbado e do capital supérfluo. A “ralé” racista que sustentou o Imperialismo e preparou o caminho para o Nazismo na Europa. A “ralé” avessa aos direitos humanos e em cujas bocas as palavras soam vazias de sentido.
A ascensão rápida da “ralé” em grande parte das instituições públicas e privadas contamina o sistema político – assim como parcelas do “povo” – com o vício da autorreferência, verdadeira praga que superestima “as coisas internas” e o aliena “das coisas externas”.
A eficácia da política passa a ser medida, então, pelo número de apadrinhamentos, favorecimentos, nomeações de apaniguados, dinheiro arrecadado para campanhas, votos feitos nas eleições, licitações fraudadas,num círculo vicioso que em algum momento será interrompido pelo crescimento insuportável da corrupção, pela autofagia e pela emergência de um mundo novo, não percebido pelo sistema político, pois alienado de tudo que diz respeito à maioria da população.
Estamos neste estágio. Já passamos pelo esvaziamento do espaço público pelas classes médias e assunção da “ralé”; a corrupção já atingiu um grau insuportável; o sistema político está assentado sobre bases pouco representativas e legítimas; transformações nas formas de mobilização e organização não param de ocorrer; algumas instituições avançaram em processos de reinvenção e desenvolveram mecanismos de Estado que as protegem da ação de rapinagem da “ralé”; a alienação do sistema alcançou seu último grau, que é a incapacidade de perceber e/ou interpretar os novos fenômenos sociais, porque a imaginação não é uma virtude oferecida à “ralé”.
Alienado do mundo que emerge à sua volta, o sistema político, em seu último estágio, não possui nenhuma via de conexão com os novos autores, seja através de valores, ideias, estética e, sobretudo, imaginação. Esse isolamento é sempre fatal em momentos de crise, que se precipitam do nada, tiram pessoas do nada, numa frequência sempre ascendente.
Estes momentos são ricos e trágicos ao mesmo tempo. Eles costumam escolher alguns políticos e a estes oferecem oportunidades de restabelecimento da confiança e da coesão social, sob novas bases. A única exigência é a coragem e a determinação para operar as mudanças, a começar pelo afastamento da “ralé” das estruturas do Estado.
Quais seriam as outras? Isso é tarefa para uma imaginação que não perdeu a capacidade de interpretar o que se passa “lá fora”, longe dos muros altos da autorreferência. Lá, onde um mundo desaba e outro emerge. Foi essa coragem, essa determinação e essa imaginação que faltaram a Luís XVI. Por isso entrou para a história como Luís Capeto.