A criminalização do aborto no Brasil joga às mulheres para a clandestinidade, na medida em que, a tipificação enquanto crime, não tem o condão de obstar a sua realização. Estima-se que a cada ano, não menos de 850 mil mulheres realizem abortos, em condições inseguras, precárias e ilegais no país. Prática esta, que se reflete nos índices de complicações decorrentes que chegam na rede de saúde.
A interrupção da gravidez – uma forma mais soft de tratar do tema – é parte da vida da maioria das mulheres brasileiras, que realizam um aborto, pelo menos, antes de chegar aos 40 anos. Nesse quadro de risco, não há quem fique de fora: ricas, pobres, brancas, negras, jovens e mais maduras. No que pese, a incidência de complicações fatais atinja na maioria as mais pobres.
Neste sentido, sim, somos todas clandestinas.
Entra ano, sai ano, e o tema do aborto segue entre nós na linha da criminalização, do que não devemos falar, ou se falar, que seja com outro nome. Mantém-se, nos marcos da regulação do Estado ou da igreja. E mesmo nos casos permitidos na Lei Penal, quando enfrentados na realidade, defrontam-se com os entraves formais, ou ainda, de consciência dos agentes de saúde. Assim, o debate sobre o aborto, segue sendo um caso de polícia.
Não fosse bastante, de tempo em tempo, surgem propostas de recrudescimento da legislação, visando eliminar os permissivos legais existentes, como ocorre com a proposta do Estatuto do Nascituro, que avança a passos largos para aprovação no Congresso Nacional. Caso, aprovado, o aborto se tornará crime de natureza hedionda; e nos casos em que a gravidez for resultante de estupro, restará não só o dever de dar à luz a um filho da violência, mas de receber uma bolsa auxílio do Estado para criá-lo. Tal situação só se torna mais cruel, quando for possível identificar o estuprador, que ao invés de punição, terá o status de pai, com direito a constar na certidão de nascimento do rebento.
O quadro é, portanto, nada animador, mas preocupante. É preciso falar sobre o aborto, cada vez mais, nos marcos do direito da mulher sobre seu próprio corpo, da sua autonomia. Dar o devido nome a esta prática que coloca as mulheres na ilegalidade e a mercê da sorte, de viver ou morrer, é urgente. Logo, o debate sobre o aborto, diz respeito ao direito das mulheres de se manterem vivas, por um lado; por outro, o quanto todos/as nós somos responsáveis por torna-las todas clandestinas.